Na cultura
grega antiga encontramos a figura mitológica de Narciso, rapaz frívolo que se
apaixonou por seu próprio reflexo na água, julgou-se um deus, deitou-se junto à
margem e definhou se contemplando. Ele se tornou o símbolo da vaidade e da
insensibilidade, pois rejeitava todo afeto que não fosse dele mesmo.
Provavelmente
este mito indique que a superfície da água inspirou o fabrico do primeiro
espelho. Entretanto, o espelho, do latim speculum, não foi e nem será
sempre um simples acessório da vaidade, pois ele revela importantes princípios
da Física, integra o funcionamento de máquinas e pode ser complemento de
decoração.
Os
primeiros vestígios da existência de espelhos remontam ao quinto milênio a.C.
Nos despojos da civilização Badariana, no Egito, junto ao Rio Nilo, foram
encontrados espelhos de cobre usados pelo homem primitivo. Posteriormente foram
construídos espelhos de prata, que é boa refletora. Mas este material escurece
em contato com a atmosfera e precisa ser limpo e trabalhado com frequência. Além
disso, ainda não refletiam a imagem com qualidade.
Na Idade Média, o homem dominou as
técnicas de fabricação de vidros; foram criados os vitrais magníficos que,
atravessados pela luz, criavam uma explosão de cores. E o espelho se tornou
mais nítido, pois em Veneza alguém teve a ideia de colar uma fina camada de
metal num vidro, revelando as feições ou os objetos colocados diante dele. Esta
chapa de metal fazia com que os raios refletissem pelo vidro projetando a
imagem e não oxidava porque era protegida por este vidro. Portanto, Veneza foi
a pátria dos artesãos que tinham a técnica da fabricação dos espelhos. Mas os
espelhos eram muito caros e poucos podiam tê-los.
No século XVII, Luis XIV construiu o
esplêndido Castelo de Versailles. Desejando embelezá-lo com uma galeria de
espelhos, designou um de seus ministros para convencer os artesãos venezianos a
ajudá-lo neste projeto. E eis que surge a famosa Galeria dos Espelhos!
Graças ao seu brilho, os espelhos foram
considerados verdadeiras joias e podiam ser encontrados apenas nos castelos,
significando, assim, um sinal de nobreza.
Em 1835, o químico alemão Justus von
Liebig descobriu o processo químico de formação de camadas metálicas de prata. E
com a Revolução Industrial, a produção passou a ser feita em grande escala e os
custos de aquisição diminuíram tornando o espelho um artigo popular no inicio do
século XX.
Os espelhos hoje também são usados para
explorar questões sobre percepção e cognição em seres humanos e em outras
espécies com capacidades neurológicas.
Há milênios que o espelho fascina as
pessoas. Ele é “como pedaços de sonhos, imagens extremamente reais e
profundamente falsas, que revelam as verdades que talvez não se queira enxergar”.
E neste século de um hedonismo exacerbado
ele toma características assustadoras, pois ele reflete uma vaidade sem limites
e um egoísmo profundamente enraizado. Os valores falsos tomam lugar dos
verdadeiros, a beleza física é colocada acima dos valores morais e espirituais.
Como Narciso, a Humanidade, apaixonada por
sua “beleza”, está se considerando um “deus” que dita suas próprias normas,
desprezando os princípios eternos revelados pelo Deus verdadeiro. E,
contemplando-se inebriada, vai definhando a olhos vistos... Até que Nossa
Senhora intervenha...
***
Este blog passou a refletir sobre o
espelho após uma conversa no Carmelo de Cotia, em que foram lembrados os textos
de Santa Clara em que ela recomenda que se olhe dentro do espelho "todos
os dias", "sem cessar".
A nossa dúvida era: o que “ver” no
espelho, já que ao olharmos vemos nossas próprias feições? O que Santa Clara vê
no espelho não é ela mesma, mas sim o Sagrado Coração de Jesus, o Divino
Espelho em que devemos refletir, isto é, meditar e imitar. É exatamente o que o
mundo moderno não faz! É o que as pessoas não querem ver refletido no “seu
espelho”, pois isto exige conversão, penitência, oração.
Santa Clara lutou por mais de quarenta
anos para responder fielmente à própria vocação e manter viva a proposta
inicial. Peçamos a ela, neste último dia do mês dedicado ao Sagrado Coração de
Jesus, que como Nossa Senhora sejamos fieis a vontade de Deus.
Textos de Santa
Clara sobre o espelho:
"Jesus é o esplendor da glória
eterna, o brilho da luz perpétua e o Espelho
sem mancha. Olhe dentro desse Espelho
todos os dias, esposa de Jesus Cristo e espelhe nEle o seu rosto, para
enfeitar-se toda, interior e exteriormente. Preste atenção no princípio do Espelho: a pobreza daquele que foi
posto no presépio! No meio do Espelho
considere a humildade, a bem-aventurada pobreza, as fadigas e as penas que
suportou pela redenção do gênero humano. E no fim do Espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no
lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa". (carta 1253)
“Olha neste Espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelha
nEle, sem cessar, tua face, para assim te adornares toda, tanto interna quanto
externamente, vestida e cercada de belezas, vestida também com as flores e o
manto de todas as virtudes, como convém, filha e esposa caríssima do Rei
Supremo. Neste Espelho, porém,
refulge a sagrada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade, tal como
poderás contemplar por todo o Espelho
com a graça de Deus”.
Galeria dos Espelhos, Castelo de Versailles
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